Sonho de Clarisse
por Licínia Quitério
As ameixas e as abelhas, juntas em cada Verão. A passividade dos frutos em oferenda ao zumbido das asas. Acontecia a doçura antes do mel, como é preciso acontecer no amor. Nas folhas do agrião triunfava o verde, em louvor da água escorrida do tanque. Lugar de regas, de lavagens e de banhos de alegria das crianças, em miragens de mar. Clarisse passeia-se de novo no quintal da casa que dantes lhe falavam. Campo de engenhos e de esforços de mulher com sementeiras e colheitas nos braços fortes. As árvores, as flores, os frutos, as sementes, em espaço exíguo, medido a palmo, estudadas com rigor a sombra e a luz e a demora dos dias. Hitórias de vitórias e derrotas contra bichos devoradores, sempre à espreita de lugar na mesa posta, atravessavam as ameias dos muros e pairavam na rua para serem levadas no bico dos pássaros ao fim da tarde. Foi por uma rola de peito róseo que Clarisse veio a sabê-las, de coração, como se fossem suas. Esta lassidão que não abandona Clarisse põe um véu sobre o rosto da casa, e torna-o jovem e liso, de olhar aberto e limpo como o das fiandeiras flamengas. A casa parada num tempo em que nada envelhece, em que ninguém falta à chamada. Coabitam as idades intactas e cruzam falas da história que lhes coube. Assim Clarisse entende os sons da casa. O silvo do vapor nas panelas, as vozes do folhetim na rádio, o pedalar da máquina de costura, o sacho nas ervas daninhas, o chiar da roldana do poço, os gritos das crianças, de todas as crianças que permanecem, únicas, continuadas. Clarisse distingue-as pelas alturas, que em tudo o resto lhe parecem iguais. Vendo melhor, uma delas tem o nome Fernando no bolso do bibe e um livro debaixo do braço. Esforça-se, em vão, por recordar o nome da terra, mãe da casa. Espera tê-lo, um dia, ainda que não volte a adormecer sobre os velhos álbuns.
Licínia Quitério
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